Lucy
Conheci a Lucy no centro de Porto Alegre. Caminhando, apressado, atento a qualquer tentativa de qualquer pessoa me oferecer ou pedir qualquer coisa, quase não a vi. Ela estava recolhendo o cocô de um de seus filhos caninos - têm três, com uma pequena pá de plástico, para logo completar a limpeza despejando água.
Aquela cena, vista de canto de olho, quando eu estava saindo de seu, digamos, campo de ação, me capturou.
Alguém naquelas condições não deveria estar preocupada em limpar a calçada, pensei.
Caminhei mais alguns passos até que o incômodo da cena me fizesse aceitar que não sairia dali tão depressa.
Lucy, soube depois, é a própria expressão da pessoa em situação de rua. Dei meia volta e cheguei perto estendendo os 7 reais que eu tinha na carteira, uma espécie de ingresso que eu pagava para conhecer sua história.
Ao mesmo tempo que recebeu e dobrou, para guardar no bolso minha contribuição, Lucy ilustrou a cena com um sorriso. Suave, quase sussurrado. Não era uma expressão de “obrigado, você salvou minha vida” - 7 reais não daria direito a isso! E sim como se tivesse certa de que eu não conseguiria passar por ela sem parar, intrigado.
O sorriso também fazia transparecer uma espécie de tranquilidade, como se tivesse certeza que o dia dela seria cheio desses contatos, eu não seria nem o primeiro nem o último. Puxei conversa perguntando como ela conseguia manter os cães naquela apresentação - estavam todos com algum tipo de coleira, parecendo bem tratados, com roupas, potes de ração e uma expressão de cachorro feliz. Me revelou que conseguia ajuda em uma agropecuária, no centro, inclusive com vacinas. A pergunta seguinte não fiz, pelo menos não em voz alta: já tendo dois filhos, porque ela foi atrás de um terceiro? “O caçula, Bebê Baunilha*, foi encontrado abandonado em um contêiner de lixo”, me revelou. Essa frase selou a história. Já não precisava ouvir mais nada. Era hora de agir. Perguntei o que a ajudaria? Novamente uma resposta inesperada: uma barraca, já que dormia coberta por alguns plásticos pretos. Ela não teria como saber, mas estava pedindo uma barraca para quem adora acampar. Fiquei de retornar. Conversei com algumas pessoas. Consegui dinheiro para alimentos e três barracas doadas. Voltei, para minha surpresa e, confesso, decepção, Lucy já estava instalada em uma barraca que alguém das redondezas doou. “Ele não aguentou me ver na chuva", disse apontando para uma das pequenas lojas por perto. Mas como Lucy vivia com os cães e mais um ou dois moradores eventuais, deixei uma das barracas que me foram doadas e que lhe seria bastante útil, segundo me tranquilizou. Restavam os alimentos. Fiz algumas compras em um pequeno mercado do centro. Entre os “preferidos” de Lucy, estavam as massas de rápido cozimento, já que ela usava como fogão improvisado uma lata grande, e como combustível, álcool ou gravetos. “Quando tu tiver tempo te conto minha história”, prometeu. Essa foi uma espécie de chamada para o próximo capítulo. Claro que, novamente, voltei. Lucy é de Laguna, tinha uma pequena estética em Porto Alegre levada pela pandemia. “Fui despejada. Em uma noite eu estava assistindo ao Fantástico, na outra estava na rua e com minhas coisas em um depósito judicial”, “Não conhecia nada dessa vida de rua, eu vivia do outro lado”, me relatou enquanto costurava algumas roupas dos filhos. Ela me contava aquilo tudo como se estivéssemos em uma sala tomando chá e falando da vida de outra pessoa. Além dos alimentos, doei meu fogareiro de camping com um liquinho sem uso. Como agora ela tinha mudado de patamar, precisaria de mais coisas para montar uma “cozinha”. Lá veio uma frigideira, acompanhada de uma caixa de ovos e óleo para começar bem as manhãs. Alguns pães e outros alimentos. E um fervedor de água ou leiteira, além de talheres. (faltaram pratos!) fruto do dinheiro arrecadado com meus colegas de trabalho e outros amigos que também “compraram a história”.
Outro dia, no centro para uma consulta ao dentista, dei uma passadinha para deixar uma garrafa térmica com estampa do Inter na “cozinha” de Lucy. Como resposta à pergunta se era colorada, mostrou uma tatuagem no pescoço com o distintivo do clube do povo.
O que mais chamou minha atenção, nas conversas com a Lucy e, portanto, em sua própria trajetória, é que ela não manifesta tristeza, dor ou ressentimento. Encara tudo como uma espécie de fase que vai passar. Já eu fico com a certeza de que, embora tenha contribuído com algumas coisas, recebi mais do que doei, e a percepção de que ela vai sim conseguir sair da rua. Se tiver ajuda, mais rápido.
(*Bebê Baunilha, Bebete e Bento são os três filhos da Lucy).
Jaime AC Ribeiro